Na segunda metade do século XV, a sociedade portuguesa encontrava-se em plena mutação. Com as viagens marítimas e os descobrimentos, o comércio com o Novo Mundo permitiu que muitos membros da nobreza e da burguesia acumulassem enormes riquezas, agravando as desigualdades sociais.
Ao lado da opulência arrogante de alguns, muitas vezes indiferentes ao sofrimento alheio, nas aldeias, vilas e cidades do Reino aumentava o número de famílias carenciadas, de estropiados, de órfãos, de idosos abandonados, de pobres, de enfermos e de errantes, padecendo todo o género de privações.
As organizações caritativas tradicionais, que muito tinham contribuído para aliviar as carências sociais e prestar cuidados de saúde aos mais desfavorecidos, enfrentavam então dificuldades redobradas para fazer face às necessidades.
É nesse contexto que, há mais de 500 anos, se iniciou a história das Misericórdias Portuguesas. A primeira foi fundada em Lisboa, a 15 de agosto de 1498, por iniciativa da rainha D. Leonor, então viúva de D. João II e regente do reino, com a finalidade de socorrer os mais necessitados. O principal objetivo é a prática das 14 obras de Misericórdia (sete corporais e sete espirituais). que englobam todos os domínios da ação social, quer de ordem material, quer moral.
As sete obras de misericórdia corporais (dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir os enfermos, visitar os presos e enterrar os mortos) são mais compreensíveis, porque se traduzem em ações visíveis.
As setes obras de misericórdia espirituais (dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo e rogar a Deus pelos vivos e defuntos), apreendem-se com maior dificuldade, porque são mais de ordem moral.
São componentes essenciais das Misericórdias a universalidade, a solidariedade e a cooperação fraterna, no respeito da identidade própria de cada um. Fazer o bem sem nada esperar em troca. Socorrer os mais desamparados sem fronteiras de raças, classes, credos, territórios ou origens, no respeito pela dignidade de cada um. As Misericórdias são instituições profundamente enraizadas na alma cristã do povo português que, depressa, as apelidou de “Santa Casa”.
Com a proteção régia e o apoio da Igreja, as Misericórdias espalharam-se rapidamente pelas principais cidades e vilas do Reino, tendo como modelo a de Lisboa. Logo, em 1499, foram fundadas as do Porto, de Évora e de Angra do Heroísmo, seguindo-se a de Coimbra (1500). Em 1524, eram já 60 e uma centena em 1580.
A preocupação em prestar auxílio aos pobres e desamparados levou à implantação de Misericórdias noutros continentes, associando humanismo cristão e solidariedade ao serviço da fraternidade universal do Homem: Goa (India, 1515-1520), Santos (Brasil, 1543), Macau (China, 1569) e Luanda (Angola, 1576). Nas últimas décadas, foram criadas as Misericórdias de Paris (1994) e do Luxemburgo (1996).
Existem hoje cerca de 400 Misericórdias em Portugal, constituindo uma rede de instituições privadas de solidariedade social que cobre todo o território. As Misericórdias Portuguesas estão agrupadas na União das Misericórdias Portuguesas. Também existem a União Europeia das Misericórdias e a Confederação Mundial das Misericórdias que associam milhares de instituições, a maioria das quais do Brasil com mais de duas mil. Estas associações de cristãos leigos tornaram-se um ator de primeiro plano nas diferentes áreas de ação e solidariedade sociais junto dos mais carenciados (saúde, ação social, emprego e formação profissional, cooperação e desenvolvimento, turismo social, etc.).